A Sacralidade da Vida: O que Perdemos ao Esquecê-la



Vestígios da Primordialidade (Fernando Scheuermann)

"Antes que o verbo enrijecesse em cifra,
as coisas murmuravam em fulgor.
A brisa declamava sortilégios,
e a seiva — ó sangue vegetal —
trazia consigo os ecos de um pacto inaugural.

Havia uma liturgia nas pedras
que não se pronunciava em voz,
mas vibrava em marés ósseas,
como cântico esquecido no âmago da medula.

Sabíamos pouco,
mas esse pouco era solene.
Respirar era rito,
e o gesto mais ínfimo —
um sacramento.

Hoje, padecemos da claridade profana.
Portamos bússolas onde havia presságios,
engenharias onde havia encantamento.
Nossos olhos, embotados de ciência,
desaprendem os espectros
que ainda dançam nos umbrais da manhã.

Mas às vezes,
um aroma suspenso,
um sussurro entre as heras,
um silêncio que cintila —
reavivam a cintilância de um Éden espectral,
como a lembrança de um jardim anterior à linguagem.

E então ficamos:
emudecidos,
inclinados diante do Invisível,
como quem reencontra a partitura de um hino
que já soube cantar em outras vidas.

Talvez não haja retorno,
mas há vestígios.
Há relíquias no gesto que não se explica,
há altar naquilo que permanece incógnito.

E talvez, apenas talvez,
a alma ainda saiba —
mesmo quando o mundo esquece."



    Houve um tempo em que tudo era sagrado.

    A pedra no caminho, o vento nas folhas, o fogo que crepitava no centro da aldeia. Os antigos não precisavam de templos de pedra, pois a própria terra era um altar. A água era mais que recurso: era espírito, era vida. A árvore não era apenas madeira, mas uma anciã de raízes profundas, portadora de sabedoria silenciosa. O sol não era só um astro — era um deus generoso, doador de calor e crescimento.

    Para esses povos, tudo tinha alma. Tudo tinha propósito. Tudo tinha um lugar no grande tecido da existência. A vida, em todas as suas formas, era reverenciada não porque fosse útil, mas porque era sagrada. Existir já era o milagre. Respirar, sentir, morrer — tudo fazia parte de um ciclo maior, imensurável aos olhos, mas intuitivamente compreendido pelo coração.

    Mas com o tempo, desaprendemos a ver.

    Nos afastamos da terra, das estrelas, das danças em volta do fogo. Nomeamos tudo, categorizamos, medimos, cortamos em partes. E ao classificar, deixamos de sentir. O sagrado foi empurrado para os altares e retirado das florestas. O divino virou dogma. A vida virou número. Hoje, a maioria caminha com os olhos baixos, desconectados da vastidão que pulsa a cada instante.

    Não vemos mais a alma das coisas.
Destruímos florestas como se fossem objetos inertes. Poluímos rios como se fossem descartáveis. Matamos animais como se não compartilhassem conosco o mesmo sopro de vida. Usamos e descartamos pessoas como se fossem funções. Esquecemos que tudo respira. Tudo sente. Tudo é parte.

    Vivemos a era da utilidade, onde o valor das coisas é medido pelo quanto podem gerar. Esquecemos que há beleza no que simplesmente é. Que há verdade no silêncio de uma manhã, no toque de uma folha, no olhar de um animal selvagem. A sacralidade se esconde agora nas frestas — mas ainda está lá. Esperando ser lembrada.

    Talvez o caminho de volta esteja na presença. Em parar. Em escutar. Em reaprender a ver com o coração o que os olhos já não enxergam. Em reconhecer que a vida, toda ela — humana, vegetal, animal, mineral — carrega um brilho que não pode ser reduzido à lógica.

    Não é tarde para lembrar.
    Mas é urgente.

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